segunda-feira, setembro 07, 2015

microexpressão

a vida periclita enquanto vejo a fox life
no esmorecer da birra a palavra que falta
que volta e meia assombra, apesar de tantos argumentos
antigos e tantas vezes repetidos.
uma série de televisão indigna-se com imoralidades
praticadas por humanos contra humanos.

depois de 25 minutos a revistar nos bolsos, meus e alheios, um cigarro
e encontrá-lo no esconderijo mais óbvio - o essencial é invisível aos olhos
resta-me este pequeno conforto
mas agora já é tarde demais
para dar alguma solenidade ao desejado momento

repudio a situação
por não saber lidar com o passanço dos outros
reflexo do nosso universo pequenino de ressentimento e vida
nada acertada aos ponteiros dos sorrisos fáceis

de mal com a vida mas nada a ver
com aquela micro expressão que antecede a notícia do cancro ou da gravidez
a dor que paralisa para sempre o cavalo interior
a alegria imensa da verdade factual
o rejubilo a dois

olha vamos fazer viagens.

quarta-feira, abril 24, 2013

domingo


Domingo, epicentro de Lisboa, Café Gelo, a ver-se o manuelino da estação de comboios do rossio, leio o jornal onde averiguam do grau de patriotismo dos jovens portugueses, e a crónica da alexandra que lembra como Lisboa se reinventa e as raparigas e rapazes são os mais bonitos do planeta.
Bocejo, e nas colunas do café a melodia... tristeza não tem fim.
Em casa varro o chão da cozinha e lavo a louça, continuamente desalinhadas estas divisões com adultos agitados que, alminhas inquietas, acordam sucessivamente de ressaca e repetem estórias mirabolantes da noite anterior construindo um património universal da boémia.
A chuva vem sedimentando poeiras existenciais e a nostalgia da baixa verte por cima dos telhados.
(mete um certo nojo)
Os turistas atarantados numa páscoa pré-época alta da marroquinização de Lisboa.
Festas trágicas no que trazem de espelho, da família que se já não tem ou mudou e, nisso, acartou incertezas, de como projectar a vida nas próximas décadas, de como não perder a curiosidade, garantir a generosidade para o acontecimento.
Como é bom tê-la pela frente, seja como for que se apresente é o que dela conseguir fazer.
Um longo inverno a ver filmes online no quentinho do sofá.
Porém, não se trata de apatia alguma, andam coisas a vibrar, as pessoas dão ideias, discutem, embebedam-se felizes ou de coração partido, mas celebram alegrias e desencontros juntos, fazem declarações de amor ou de admiração, metem-se em negócios perdulários, julgam-se ideologicamente como bons polícias do quotidiano, mandam-se para o caralho e regressam sem mágoas.
A viagem prossegue, estamos elementarmente a segui-la. E a crescer.
Pudera eu fazer justiça a esta liberdade. 

a um passo


Tchekov está deitado antes de morrer e afaga a barba postiça que o fez entrar no teatro na mocidade. Como todas as pessoas que se preparam para abandonar o mundo dos vivos, sente necessidade de acertar contas com a vida. 
-       Mais um vodka.
Lembra-se das brincadeiras tontas com os irmãos Nicolai e Michail. E das discussões com o fiel amigo Vladimir.  Por mais Shakespeare e Victor Hugo que lesse não tinha ambições de superá-los. 
Poderá pensar em alguém a cavar-lhe a sepultura.
Tchekov ainda nada sabia do maio de 68 nem dos centros comerciais. Escrevera na estepe a sua última crónica e não perdia tempo a imaginar o futuro.
E agora agradecia o pão, era bem educado com o passado. 
Talvez pensasse que os rinocerontes são feitos de pêlos, os macacos são parecidos connosco e os tigres não têm manchas iguais.
Melancólico, um pouco reaccionário. Os vindouros gostam de especular.
Apesar de médico, Tchekov receava as dores do seu próprio corpo, vira muita gente a sofrer.
Elege o perfume fúnebre que lhe desperta a mais eloquente sensação de vida: o odor das macieiras e das cerejeiras da sua quinta em melichovo.
Lembra Lidjia Mizinova e de como combateram a cólera. 
Sempre soube como é difícil viver em sociedade, mesmo antes desta ser uma máscara sem rosto.
As suas personagens não gritam, não amaldiçoam, deixam-se estar para ali.
Escolhe a roupa mais apropriada para o momento de se extinguirem as ideias. Não regressará mais ao gelo da rússia, ao moscovo do coração, aos camponeses alcoólicos, e apesar disso está a um passo da imortalidade.

quarta-feira, abril 03, 2013

Esta manutenção torpe

O dia foi melhor depois de te ler. Não sei se por te ver andar de bicicleta nas fotografias… Estou demasiado no que não acontece. Reparo na roupa que se gasta pouco a pouco, com seus buracos (não produzidos pelo roubo), e digo para mim: não tenho outra. Não é que não pense em ti todos os dias, mas a minha vida atual não segrega palavras, como por toda a parte se nota. Simplesmente, não sei uma palavra sobre a alma de ninguém. Não há profundidade alguma nisso, a que não está bem chamar de indiferença. Dou sempre os mesmos passos, de mãos nos bolsos em redor do jardim, enquanto penso no que posso dizer-te. E não sai nada, nada enfim que valha a pena, nada que não seja sobretudo superficial por relação a ti… Encontro-me encafuado do mundo, tentando não me deixar tocar. Não responder a nenhuma das suas solicitações, dignas ou indignas. Nada, apenas esta manutenção torpe. Dos impostos então, bem faço por disfarçar… A verdade é que não sei qual a pequena coisa que me fará cair. Às vezes consigo fechar-me umas horas no trabalho de ler papéis. Então algo acontece: um fervor — de que também desconfio a artificialidade e inutilidade — toma-me… Mas tudo o resto, de fora e também de dentro, me custa. Perdi aquela generosidade tão suspeita. Temo que só tenha para contar o medo.

terça-feira, maio 15, 2012



Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder
tão firme e silencioso como só houve
no tempo mais antigo.
Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer,
sorrindo com ironia e doçura no fundo
de um alto segredo que os restitui à lama.
De doces mãos irreprimíveis.
- Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,
as casas encontram seu inocente jeito de durar contra
a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras.

Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta
do gosto, o entusiasmo do mundo.
Descobrimos corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio
admirável das fontes –
pensamentos nas pedras de alguma coisa celeste
como fogo exemplar.
Digamos que dormimos nas casas, e vemos as musas
um pouco inclinadas para nós como estreitas e erguidas flores
tenebrosas, e temos memória
e absorvente melancolia
e atenção às portas sobre a extinção dos dias altos.
(...)
Herberto Helder, 1961

eterna adolescência

que dificulta a transição do pensamento fantasmático para o pensamento racional. 

na clínica


As mulheres têm um ar de desalento e os companheiros dão-lhes força. Ninguém sabe se vão conseguir resolver os seus problemas e as relações ficam tensas nessa culpabilidade inocente. 

domingo, maio 13, 2012

neblina

a porta do café dá para a embaixada de frança quase no cruzamento com a rua da esperança.
uma neblina branca cobre os prédios com um potencial surrealista. Estar calor sem fazer sol tem qualquer coisa de tragicomédia. O telejornal da tarde fecha com uma peça do Sassetti que morreu há pouco na falésia. O piano induz a olhar a rua no seu crescendo de vida - aquele momento em que o fim (de cada um e de todas as coisas) é conscienciosamente anunciado. A velhota passa agarrada à sobrinha, o polícia olha para as botas melancólico, o homem levanta vagarosamente as chávenas das bicas, a rapariga lê o jornal, e nada disto é sereno.

sexta-feira, abril 27, 2012

acontecendo

tempo sombrio, estranho, severo, de abandonos e morte dos que fazem falta.
ao mesmo tempo irrompendo coisas lindas,
casas maiores do que as paredes guardam memórias por viver
vontades antigas ganham forma, braços unem-se mais certeiros.


sexta-feira, abril 06, 2012

"quem sabe amor onde o amor se fere?”

Ao contrário de tantos poetas, em Assis Pacheco o amor não se manifesta tanto num jogo de privação e de busca, mas numa cumplicidade do sentimento vivido a dois. Reacção, novidade e vivência, sem intelectualizar o conceito cujo sentido da sua existência é ser vivido. Nos seus poemas adivinha-se uma presença concreta que extravasa as metáforas e partilha os versos.

No poema Volta à Amada em uma Semana, Assis Pacheco descreve a sequência que o levou a aportar no “país rumorejante” que personifica o amor, transfiguração a caminho: passa por ser casa, por cegar o amante com as suas delícias, atribui conhecimento (“senti-me sábio, cheio de janelas e fragrâncias”), é temido e indesejado (“gritei, nunca tu viesses, dominador, devorador!”), até ser enfim imenso e capaz de tudo absorver (“eu era um oceano”). Depois, o amante transformado (transforma-se o amador na cousa amada), experimenta reacções contraditórias: aceitação e revolta, prisão e arrebatamento.

Numa profunda relação entre poesia, dor e libertação, o amor é também libertação desmesurada das mais sinceras aspirações dos homens, não nomeáveis, não definidas. Um mundo enlouquecido do qual a expressão lírica se aproxima por imagens: “Não sei se o que chamam amor / é a cama desfeita o sol fugindo, / uma vontade louca de beber / a grandes goles a noite entorpecente.” (A.P.) É esse descomedido gesto, simultaneidade de sensações e de vontades antagónicas, de tudo querer e ousar: “sem causa, juntamente choro e rio / o mundo todo abarco e nada aperto”. A finura inconsistente da areia diz da sua vulnerabilidade: “Não sei / se o que chamam amor é este apaziguamento.(...) não sei se o que enfim chamam / amor é esta areia fina.” Exaltação, reafirmar a dúvida, para que ninguém esqueça: “quero lembrar que sou pelo amor, / suas virtudes e armas / contra a melancolia”. Pois o “amor não quer cordeiros nem bezerros.”

“um homem tem que viver com um pé na Primavera”

Tenho estado a reler a poesia de Fernando Assis Pacheco. Um diálogo intertextual familiar a António Machado e toda a literatura espanhola, poesia inglesa entre guerras, poesia americana contaminada pelos vanguardistas europeus emigrados, fugindo aos modelos estilísticos dos anos 60 cheios de ecos neo-realistas. Uma certa ironia lírica surrealizante que versa os encantos do acaso, quotidiano e viagens sem preocupações formais, numa mestria que derruba barreiras entre a poesia e as pessoas. Adepto da ideia de que a poesia só deve ser difícil para quem a escreve, como aforismou Vladimir Holan: “do esboço à obra o caminho faz-se de joelhos”.

“Oferecendo-nos a bela ilusão da grandeza humana, o trágico traz-nos uma consolação. O cómico é mais cruel: revela-nos, brutalmente, a insignificância de tudo", já explicava o Kundera. Pelo risível lá se vai desconstruindo a aparente finalidade da vida e Assis Pacheco lembra a condição ingrata e egocêntrica do poeta, aquele que se está sempre a lamentar e a exibir ao mundo as suas dores particulares, qual menino mimado a pedir afecto. “Amantes em aflição”, os poetas. indignar-me é o meu signo diário, escreve em Poeta no Supermercado.